O juízo particular
Diz Deus:
Os pecadores não podem desculpar-se. Continuamente
são por mim convidados ao conhecimento da Verdade. Não se corrigindo enquanto
podem fazê-lo, uma segunda repreensão os condenará. Ela acontece no último
instante da vida, quando meu Filho chamar: "Surgite mortui, venite ad
judicium" (Levantai-vos, ó mortos, vinde para o julgamento)! Tu que
morreste para a graça e morto chegas ao fim da vida terrena, levanta-te,
aproxima-te do supremo Juiz. Aproxima-te com tua maldade, com teus julgamentos
falsos, com a lâmpada da fé apagada. No santo batismo, ela foi-te entregue
acesa; tu a apagaste com o sopro do orgulho e da vaidade do coração, usados
como velas enfunadas às ventanias contrárias à salvação. O amor da fama soprava
teu amor-próprio (egoísmo) e tu corrias alegre pelo rio dos prazeres mundanos;
seguias a frágil carne, as incitações do demônio, as tentações. Tua vontade era
um pano retesado e o diabo te conduziu pela estrada do mal, junto com ele, para
a eterna condenação.
Filha muito querida, esta segunda repreensão se dá
no fim da vida, quando não há mais remédio. Ao chegar o instante da morte, o
homem sente remorso. Já afirmei que ele é um verme cego por causa do egoísmo.
No instante final, quando a pessoa compreende que não pode fugir das minhas
mãos, esse verme recupera a visão e atormenta interiormente a pessoa, fazendo
ver que por própria culpa chegou a tão triste situação. Se o pecador se deixar
iluminar e se arrepender - não por medo dos castigos infernais, mas por ter
ofendido a suma e eterna bondade - ainda será perdoado. Mas se ultrapassar o
momento da morte nas trevas, no remorso, sem esperança no sangue ou, então,
lamentando-se apenas pela infelicidade em que se acha - e não por ter me
ofendido - irá para a perdição. Sobrevirá, pois, a repreensão pela injustiça e
falso julgamento.
Em primeiro lugar, a repreensão da injustiça e do
julgamento falso em geral, praticados no conjunto de suas ações; depois, em
particular, do último instante, quando o pecador considera seu pecado maior que
minha misericórdia. Este (Mt 12,32) é o pecado que não será perdoado, nem aqui
nem no além. O desprezo voluntário da minha misericórdia constitui pecado mais
grave que todos os anteriores. Neste sentido, o desespero de Judas
desagradou-me e foi mais grave que a sua traição. Também para meu Filho! É por
causa deste (último) julgamento falso que o pecador sofre a repreensão, ou
seja, porque acha que sua falta é maior que meu perdão. Este é o motivo da
punição, indo sofrer eternamente com os demônios.
A repreensão da injustiça acontece porque os
pecadores sentem mais tristeza pelos próprios danos que por me terem ofendido.
São injustos, no sentido de que não atribuem a mim o que me pertence e a si o
que é deles. A mim deveriam oferecer o amor, a tristeza e contrição dos pecados
cometidos. Mas agem no sentido oposto, só demonstrando autocompaixão e angústia
pelo castigo que lhe merecem seus pecados. Como vês, são injustos. E por tal
motivo são punidos por uma e por outra coisa.. Já que desprezaram meu perdão,
com justiça mando-os ao castigo (Mt 25,41), juntamente com a escrava
sensualidade e o tirano demônio, a quem na sensualidade serviam. Já que
solidariamente me ofenderam, juntos serão punidos e atormentados. Os próprios
demônios, encarregados por mim de cumprir a sentença de justiça,
atormentá-los-ão.
Filha, a tua linguagem é incapaz de descrever os sofrimentos destes infelizes. Sendo três os seus vícios principais - egoísmo, medo de perder a boa fama e orgulho - aos quais se acrescentam a injustiça, a maldade e vergonhosos pecados, no inferno os pecadores padecem quatro tormentos principais.
Primeiro tormento é a ausência da minha visão. Um sofrimento tão grande que os condenados, se fosse possível, prefeririam sofrer o fogo vendo-me, que ficar fora dele sem me ver.
Filha, a tua linguagem é incapaz de descrever os sofrimentos destes infelizes. Sendo três os seus vícios principais - egoísmo, medo de perder a boa fama e orgulho - aos quais se acrescentam a injustiça, a maldade e vergonhosos pecados, no inferno os pecadores padecem quatro tormentos principais.
Primeiro tormento é a ausência da minha visão. Um sofrimento tão grande que os condenados, se fosse possível, prefeririam sofrer o fogo vendo-me, que ficar fora dele sem me ver.
Segundo
tormento, como consequência, é o remorso que corrói interiormente o pecador privado de mim,
longe da conversação dos anjos, a conviver com os demônios.
Aliás, a
visão do diabo constitui o terceiro tormento. Ao vê-lo, duplica-se o sofrer. No céu, os
bem-aventurados exultam com minha visão e sentem rejuvenescer o prêmio recebido
pelas fadigas amorosamente suportadas (no mundo); da mesma forma, mas em
sentido contrário, os infelizes danados vêem crescer seus padecimentos ao verem
os demônios. Nestes, eles se conhecem melhor, entendendo que por sua própria
culpa mereceram o castigo. Assim o remorso os martiriza e jamais cessará porque
o diabo é visto no próprio ser; tão horrível é a sua fealdade, que a mente
humana não consegue imaginar. Se ainda o recordas, já te mostrei o demônio uma
vez assim como ele é; foi por um átimo de tempo. Quando retornaste aos
sentidos, preferias caminhar por uma estrada de fogo até o juízo final que
tornar a vê-lo. No entanto, apesar do que viste, ignoras sua fealdade.
Especialmente porque, segundo a justiça divina, ele é visto mais ou menos
horrível pelos condenados, segundo a gravidade das culpas.
Quarto
tormento é o fogo. Um fogo que arde sem consumir, sem destruir o ser humano. É algo de
imaterial, que não destrói a alma incorpórea. Na minha justiça permito que tal
fogo queime, que faça padecer, aflija; mas não destrua. É ardente e fere de
modo crudelíssimo em muitas maneiras, conforme a diversidade das culpas. A uns
mais, a outros menos, segundo a gravidade dos pecados.
Destes quatro tormentos derivam os demais: o frio,
o calor, o ranger de dentes (Mt 22,13). Como vês, repreendo os pecadores nesta
vida por seus julgamentos falsos e injustiças; se não se corrigem, faço-lhes
uma segunda repreensão na hora da morte; pela ausência de esperança e arrependimento,
sobrevem-lhes a morte eterna em indizível infelicidade.
Falta-me discorrer sobre a terceira repreensão: o
juízo final. Já falei das duas primeiras repreensões; passo a tratar do
julgamento geral, quando a alma do condenado sentirá renovar-se o seu tormento,
e mesmo aumentar, com a recuperação do corpo. Será um padecimento intolerável,
acompanhado de muita confusão e vergonha. Quero que entendas quanto se enganam
os pecadores (neste mundo).
Por ocasião do juízo final, o Verbo encarnado virá
com divina majestade repreender o mundo. Não mais se apresentará pobrezinho, na
forma como nasceu da Virgem numa estrebaria, entre animais, para morrer depois
no meio de ladrões. Naquela ocasião, ocultei nele o meu poder e permiti que
suportasse penas e dores como homem. A natureza divina se unira à humana e foi
enquanto homem que sofreu para reparar vossas culpas. No juízo final, não será
assim, pois virá com poder a fim de julgar. As criaturas humanas estremecerão e
ele a cada um dará a sentença conforme o merecimento. Tua língua não consegue
exprimir o que sucederá aos condenados. Para os bons, Jesus será motivo de
temor santo e alegria imensa.
Em si mesmo, meu Filho não terá diferenças, pois
sendo Deus é imutável. Ele é uma só coisa comigo. Pela glória da ressurreição,
até sua natureza humana não padece mudanças. Mas os condenados não o verão
assim. Olhá-lo-ão com vista obscurecida e horrível, como lhes é próprio. O olho
doentio, mesmo diante do sol, somente vê escuridão, ao passo que o olho sadio
vê apenas luz. Não que o sol, em sua luz, transforme-se diante do cego ou
daquele que possui bons olhos. O defeito está na cegueira. O mesmo acontece com
os condenados. Verão o ressuscitado em escuridão, na confusão, no ódio. Repito:
não por imperfeição da majestade divina, que virá julgar o mundo, mas por causa
da própria cegueira.
Grande é o ódio dos condenados, pois já não amam o
bem. Blasfemam continuamente contra mim! Queres saber porque já não podem
desejar o bem? É porque, no fim desta vida, vincula-se o livre arbítrio. Com o
cessar do tempo, já não se merece mais. Quem termina esta existência no pecado
mortal, por direito divino fica para sempre apegado ao ódio, obstinado no mal,
a roer-se interiormente. Seus sofrimentos irão aumentando sempre, especialmente
por causa das demais pessoas que por sua causa irão para a condenação.
Tendes a respeito disto o exemplo do rico epulário
(Lc 16,27), que suplicava a Lázaro para que fosse até seus irmãos, no mundo, a
fim de adverti-los sobre os futuros castigos. Ele não agia assim por amor e
compaixão deles. Não tinha mais a virtude da caridade, nem poderia desejar-lhes
o bem, seja querendo honrar-me ou salvar os irmãos. Já te disse (14.3.3) que os
condenados ao inferno não podem fazer o bem; eles só blasfemam contra mim, uma
vez que suas vidas acabaram no ódio a todo bem. Por que então o rico epulário
fala daquela maneira? Porque fora o mais velho dos irmãos e dera-lhes maus
exemplos durante a vida; pessoalmente era causa de condenação eterna para eles.
Se viessem para sua companhia, teria seus próprios sofrimentos aumentados.
(do Livro O Diálogo – Santa Catarina de Sena)
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