5 – NASCIMENTO DE MARIA. A SUA VIRGINDADE NO ETERNO PENSAMENTO DO PAI
Vejo Ana sair no pomar. Apoia-se ao braço provavelmente de
uma parente, porque se assemelha a ela. Está muito volumosa e parece afadigada
talvez pelo afã, parecido com o que sinto agora. Embora o pomar esteja na
sombra, o ar ali está quente, pesado. Um ar que se poderia cortar como uma
massa mole e quente, de tão denso, sob um impiedoso céu de um azul embaçado
pela poeira suspensa nos espaços. Faz tempo que deve ter havido estiagem,
porque a terra, onde não é irrigada, está literalmente reduzida a uma poeira
finíssima, quase branca. De um branco levemente tendente a um rosa - escuro,
mais para o marrom ao pé das plantas ou ao longo dos breves canteiros, onde
banhadas crescem fileiras de hortaliças, em torno aos roseirais, aos
jasmineiros, outras flores, que estão ao lado de uma parreira bonita cortando
pela metade o jardim, até ao início dos campos, despojados de gramináceas.
Também a relva do prado, assinalando o fim da propriedade, está chamuscada e
rala. Só às margens dela, onde há uma cerca de espinheiro-alvar selvagem,
marcado pelos rubis dos pequenos frutos, a grama é mais verde e espessa. Ali
estão as ovelhinhas com um pequeno pastor, à procura de pasto e de sombra.
Joaquim está ao redor das fileiras e das oliveiras. Com ele
há dois homens que o ajudam. Mesmo ancião, Joaquim é ágil e trabalha com gosto.
Estão abrindo pequenos cercados nos limites de um campo, para dar água às
plantas sequiosas. A água abre um caminho borbulhando entre a relva e a terra
abrasada, e se estende em anéis, que por um momento parecem de um cristal
amarelado e depois são só anéis escuros de terra úmida, em torno aos sarmentos
e as oliveiras sobrecarregadas.
Ana lentamente vai na direção de Joaquim que quando a vê se
apressa a encontrá-la andando pela parreira sombreada, sob a qual abelhas de
ouro zumbem ávidas do açúcar dos grãos de uva branca.
- Chegastes até aqui?
- A casa está quente como um forno.
- E tu sofres.
- O único sofrimento é desta minha última hora de grávida. O
sofrimento de todos, homens e animais. Não te acalores demais, Joaquim.
- A água, que esperamos faz tempo e que de três dias para cá
parecia bem próxima, ainda não veio, e o campo queima. É bom para nós que temos
a nascente próxima e é muito rica de águas. Abri os canais. Um pouco de
refrigério para as plantas, que têm as folhas murchas e cobertas de poeira. Mas
é suficientes só para mantê-las vivas. Se chovesse. Joaquim, com a ânsia de
todos os agricultores, perscruta o céu, enquanto Ana, cansada, se abana com um
leque que parece feito com uma folha seca de palma, entrelaçada com fios
multicolores que a tornam rígida.
A parenta diz: - Lá, além do grande Hermon, surgem nuvens
velozes. Vento do norte. Refrescará e talvez trará água.
- São três dias que se levanta e depois cai com o surgir da
lua. Será ainda assim. Joaquim está
desanimado.
- Voltemos para casa. Aqui também não se respira, e depois
penso que seja bom voltarmos. – diz Ana, que parece ainda mais olivácea por
causa de uma palidez que lhe veio sobre o rosto.
- Sofres?
- Não. Mas sinto aquela grande paz que senti no Templo quando
me foi dada a graça e que senti ainda quando soube que seria mãe. É como um
êxtase. Um doce sono do corpo, enquanto o espírito jubila e se aplaca em uma
paz sem comparação humana. Eu te amei, Joaquim, e quando entrei na tua casa e
disse a mim mesma: “Sou esposa de um justo”, tive paz, e assim todas as vezes
que o teu amor providencial cuidou da tua Ana. Mas esta paz é diferente. Veja,
eu creio que é uma paz como aquela que devia invadir, como óleo que se expande
e suaviza o espírito de Jacó, nosso pai, depois do seu sonho de anjos; e,
melhor ainda, semelhante à paz jubilosa dos Tobias depois que Raquel se
manifestou a eles. Se me abandono a apreciá-la, ela sempre cresce mais. É como
se eu subisse pelos espaços azuis do céu... e, não sei porque, desde que eu
tenho em mim essa alegria pacifica, eu tenho um cântico no coração, aquele do
velho Tobias. Parece-me que tenha sido escrito para esta hora... para esta
alegria... para a terra de Israel que a recebe... para a Jerusalém pecadora e
agora perdoada... mas, não rides dos delírios de uma mãe, quando digo:
“Agradece ao Senhor pelos teus bens e glorifica o Deus dos séculos, a fim de
que reedifiques em ti o seu Tabernáculo”, eu penso que aquele que reedificará
em Jerusalém o Tabernáculo do Deus verdadeiro será este que está para nascer,
penso ainda que não mais do que a Cidade santa, mas pela minha criança seja
profetizado o destino quando o cântico diz: “Tu brilharás com uma luz
esplendida, todos os povos da terra se prostrarão a ti, as nações virão a ti
trazendo presentes, em ti adorarão o Senhor e julgarão santa a tua terra,
porque dentro de ti invocarão o Grande Nome. Tu serás feliz nos teus filhos,
porque todos serão abençoados e se reunirão ao lado do Senhor. Bem-aventurados
aqueles que te amam e regozijam tua paz!” E a primeira a regozijar sou eu, a
sua mãe bem-aventurada.”
Ana empalidece e se inflama como algo trazido pela luz lunar
a um grande fogo e vice-versa, ao dizer estas palavras. Doces lágrimas descem
sobre suas faces e ela nem as percebe, sorrindo de alegria. E assim vai em
direção à casa, entre o esposo e a parente, que a escutam e calam-se comovidos.
Apressam-se porque as nuvens, impelidas por um vento forte
galopam e crescem pelo céu, e a planície torna-se escura e estremece por um
aviso de temporal. Quando alcançam à soleira da casa, um primeiro relâmpago
lívido sulca o céu e o barulho do primeiro trovão parece o rufar de um enorme
tambor que se mistura ao harpejo dos primeiros pingos sobre as folhas secas.
Entram todos e Ana se retira, enquanto Joaquim, alcançado
pelos criados, fala, da porta, desta longa espera pela água, que é uma benção
para a terra sedenta. Mas a alegria se transforma em temor, porque vem um
temporal violentíssimo com raios e nuvens carregadas de granizo.
- Se a nuvem rompe, a uva e as oliveiras serão esmagadas como
pela moenda. Pobres de nós!
Joaquim tem uma outra ansiedade: pela esposa para a qual
chegou a hora de dar à luz o seu filho. A parente o tranquiliza que Ana não
sofre absolutamente nada. Mas ele está ansioso; cada vez que a parente ou outras
mulheres, entre as quais a mãe de Alfeu, saem do quarto de Ana para depois
voltarem com água quente e bacias e linhos enxutos junto ao fogo da lareira
central numa cozinha ampla, Joaquim pergunta algo, não se acalmando com as
respostas. Também a ausência de gritos de Ana o preocupa. Diz:
- Eu sou homem e nunca vi um parto. Mas lembro-me de ter
ouvido dizer que a ausência de dores é fatal...
Vem a noite, antecipada pela fúria tempestuosa que é
violentíssima. Água torrencial, vento, raios, ali tem de tudo, menos o granizo,
que foi cair em outra parte.
Um dos criados percebe a violência e diz:
- Parece que satanás saiu do inferno com seus demônios. Olha
que nuvens negras! Sente que cheiro de enxofre no ar, assobios, sibilos, vozes
de lamento e maldição. Se é ele, está furioso esta noite!
O outro criado ri e diz:
- Fugiu-lhe uma grande presa, ou Miguel o espancou com uma
nova faísca de Deus, e ele ficou com o chifre e o rabo cortado e queimado.
Passa correndo uma mulher e grita:
- Joaquim! Está para nascer! E foi tudo rápido e feliz! E desaparece com uma pequena ânfora entre as
mãos.
O temporal para de improviso depois de um último raio tão
violento que arremessa contra as paredes três homens; e na frente da casa, no
chão do horto-jardim, fica como lembrança um buraco preto e fumegante. Ao mesmo
tempo um gemido vem de lá da porta de Ana, gemido que parece um lamento de uma
rolinha que pela primeira vez não pia, mas arrulha. Um enorme arco-íris estende
a sua listra em semicírculo sobre toda a amplidão do céu. Surge, ou pelo menos
parece surgir, do cume do Hermon que beijado por uma lama de sol, parece de
alabastro de um branco-rosado delicadíssimo. Este arco-íris levanta-se até o
mais claro céu de setembro, e, atravessando por espaços limpos de toda
impureza, sobrevoa as colinas da Galiléia e a planície que aparece, entre duas
arvores de figo, ao sul e depois ainda um outro monte, indo pousar a sua ponta
final no extremo horizonte, lá onde uma áspera cadeia de montanhas fecha
qualquer outro panorama.
- Nunca vi isso!
- Olhai, olhai!
- Parece que toda a terra de Israel está ligada em um
círculo, mas olhai, ali já há uma estrela, enquanto que o sol ainda não
desapareceu. Que estrela! Brilha como um enorme diamante!
- A lua é toda plena, enquanto que ainda faltam três dias
para a lua cheia. Mas olhai como resplandece!
As mulheres chegam repentinamente, alegres com um
embrulhozinho rosado entre tecidos alvos.
É Maria, a Mãe! Uma Maria pequenina que poderia dormir entre
o círculo de braços de um menino, uma Maria comprida tanto quanto um braço, uma
cabecinha de marfim tingido de um rosa tênue, com a boquinha de carmim, que já
não chora mais, mas faz o instintivo ato de sugar, tão pequena que não se sabe
como fará para pegar um mamilo, um narizinho diminuto entre duas pequenas faces
arredondadas e ao tocá-lo abrem-se os olhinhos, dois pedacinhos do céu, dois
pontinhos inocentes e azuis olham, mas não veem, entre cílios delicados, de um
loiro tão intenso que é quase róseo. Também os cabelinhos sobre a cabecinha
arredondada são a cor loiro-rosado de algumas qualidades de mel quase branco.
No lugar de orelhas, duas conchinhas rosadas e transparentes,
perfeitas. E por mãozinhas... o que são aquelas duas coisinhas que agitam-se no
ar e depois vão à boca? Fechadas como agora, dois botões de rosa musgo que
separam o verde das sépalas e lhes estende a seda de um tênue rosa; abertas
como agora, duas pequenas joias de marfim de alabastro ligeiramente rosado, com
cinco romãs pálidas no lugar das unhazinhas. Como farão aquelas mãozinhas para
enxugar tanto choro?
E os pezinhos? Onde estão? Por enquanto são só um espernear
escondido entre os linhos. Mas eis que a parente senta-se e a descobre... Oh!
Os pezinhos! Compridos uns quatro centímetros, têm por planta, uma concha
coralina, como dorso um concha de um branco neve com veiazinhas azuis, têm por
dedinhos as obras-primas de escultura liliputiana, são também coroados por
pequenos fragmentos de pálida romã. Mas como se encontrarão sandalinhas tão
pequenas para poder estar naqueles pezinhos, quando tais pezinhos de boneca
derem os primeiros passos? E como estes mesmos pezinhos farão tão áspero
caminho e sustentarão tanta dor, debaixo de uma cruz?
Mas agora isto não se sabe, e se ri e sorri do seu debater-se
e espernear, das perninhas bonitas torneadas, das coxas pequenas que fazem
covinhas e dobrinhas de tanto que são gorduchas, da barriguinha, uma taça
emborcada do pequeno tórax perfeito sob cuja seda cândida se vê o movimento da
respiração que certamente se ouve. O pai feliz escuta seu peitinho agora, e o
beija ao ouvir bater um coraçãozinho... Um coraçãozinho que é o mais bonito que
a terra teve nos séculos dos séculos, o único coração humano imaculado.
E as costas? Eis que a viram, e se vê a forma dos rins e
depois os ombros gorduchos e a nuca rosada tão forte que a cabecinha se ergue
sobre o arco das pequenas vértebras, parecendo a cabecinha de um pássaro que
perscruta ao redor o mundo novo e tem um gritinho de protesto por ser assim
mostrada, ela, a pura e casta, aos olhos de tantos, ela que homem nenhum verá
nua, a toda virgem, a santa e imaculada. Cobri, cobri este botão de flor-de-lis
que nunca se abrirá sobre a terra e que dará, ainda mais bonita que ela, a sua
flor, sempre permanecendo botão. Só nos Céus o Lírio do Trino Senhor abrirá
todas as suas pétalas. Porque no céu não há poeira de culpa que possa
involuntariamente profanar aquele candor. Porque lá em cima deve ser acolhido,
à vista de todo o Empíreo, o Deus Trinitário que agora ocultado em um coração
sem macula, entre poucos anos estará nela: Pai, Filho, Esposo.
Eis ali de novo entre os linhos e entre os braços do pai
terreno, com quem ela se assemelha. Não Agora. Agora é um esboço de homem. Eu
digo que se lhe assemelhará quando mulher. Da mãe não tem nada. Do pai, a cor
da pele, dos olhos e certamente dos cabelos que, se agora são brancos, na
juventude eram certamente loiros como o dizem as sobrancelhas. Do pai, as
feições, feitas mais perfeitas e gentis por ser ela mulher, a mulher. Do pai o
sorriso, o olhar, o modo de mexer-se e a estatura. Pensando em Jesus, como o
vejo, acho que Ana deu a sua estatura ao Neto e a cor marfim mais carregada da
pele. Enquanto que Maria não tem aquela imponência de Ana, um palmo mais alta e
flexível, mas tem a gentileza do pai.
As mulheres também falam do temporal e do prodígio da lua, da
estrela, do imenso arco-íris, enquanto junto ao Joaquim entram onde está a mãe
feliz e lhe entregam a criancinha.
Ana sorri a um pensamento:
- É a Estrela – diz.
- O seu sinal está no céu. Maria, arco de paz! Maria, minha
estrela! Maria, lua pura! Maria, nossa pérola!
- Chama-se Maria?
- Sim. Maria, estrela, pérola, luz e paz...
- Mas também quer dizer amargura... Não temes trazer-lhe
desventura?
- Deus está com ela. Já era Dele antes de ser. Ele a
conduzirá pelos seus caminhos e toda amargura se transformará em um paradisíaco
mel. Agora sejas da tua mãe... ainda por um pouco, antes de seres toda de
Deus...
E a visão termina sobre o primeiro sono de Ana mãe e de Maria
criança.
Jesus diz:
“Surge e apressa-te pequena
amiga. Tenho um desejo ardente de te levar Comigo para o azul paradisíaco da
contemplação da Virgindade de Maria. Sairás com a alma jovem como se tu também
fosses criada há pouco tempo pelo Pai, uma pequena Eva que não conhece a carne.
Sairás com o espírito repleto de luz, porque tu mergulharás, na contemplação da
obra-prima de Deus. Sairás com todo o teu ser saturado de amor, porque
compreenderás como Deus sabe amar. Falar da concepção de Maria, a sem mácula,
quer dizer mergulhar-se no azul, na luz, no amor.
Vem e lê as suas glórias no Livro
do Avo: “Deus me possuiu no início de suas obras, desde o princípio, antes da
criação. “Ab aeterno” fui predestinada no princípio. Antes que fosse feita a
terra, ainda não existiam os abismos e eu já era conhecida. Nem as nascentes
das águas transbordavam, nem os montes tinham-se erguido em suas grandes
dimensões, nem as colinas eram cadeias montanhosas ao sol, e eu já tinha sido
gerada. Deus ainda não tinha feito a terra, os rios, e as bases do mundo, e eu
era. Quando preparava os céus eu estava presente, quando com lei imutável
fechou sob a orla celeste o abismo, quando tornou estável no alto a abóbada
celeste e suspendeu as fontes das águas, quando fixava ao mar os seus confins e
dava leis às fontes das águas de não passar os seus limites, quando assentava
os fundamentos da terra, eu estava com Ele a dispor todas as coisas. Sempre na
alegria brincava diante Dele continuamente, brincava no universo”. Aplicaram estas
palavras à Sabedoria, mas na realidade ela fala dela: a bela mãe, a santa mãe,
a virgem mãe da Sabedoria, que sou Eu que te falo.
Eu quis que tu escrevesses o
primeiro verso deste hino no início do livro que fala dela, para que fosse
confessada e percebida a consolação e a alegria de Deus; a razão do constante,
perfeito, intimo regozijo deste Deus uno e trino, que vos guia e ama, que do
homem teve tantas razoes de tristeza; a razão pela qual Deus perpetuou a raça,
mesmo quando, à primeira prova, merecia ser destruída; a razão do perdão que
vocês tiveram.
Ter Maria que o amasse. Oh! Bem
merecia criar o homem, e deixá-lo viver, e decretar perdoá-lo, para ter a
virgem bela, a virgem santa, a virgem imaculada, a virgem enamorada, a filha
dileta, a mãe puríssima, a esposa amorosa! Muito e mais ainda vos deu e vos
daria Deus para poder possuir a criatura de suas delicias, o sol do seu sol, a
flor do seu jardim. E muito continua a dar-vos por ela, a pedido dela, pela
alegria dela, porque a sua alegria se derrama na alegria de Deus e a aumenta de
esplendor que enche de faíscas a luz, a grande luz do Paraíso; cada centelha é
uma graça para o universo, para a raça do homem, para os próprios
bem-aventurados, que respondem-lhes com um grito radiante de aleluia a cada geração
de milagre divino, criado pelo desejo do Deus Trino de ver o cintilante riso se
alegria da Virgem.
Deus quer um rei no universo que
Ele havia criado do nada. Um rei que, pela natureza da matéria, fosse o
primeiro entre todas as criaturas criadas e dotadas de matéria. Um rei que,
pela natureza do espírito, fosse quase divino, fundido na Graça como no seu
inocente primeiro dia. Mas a Mente suprema, onde são notórios todos os
acontecimentos mais distantes em séculos, cuja vista vê incessantemente tudo quanto
era, é, e será, enquanto contempla o passado e observa o presente, eis que
aprofunda o olhar no ultimo futuro sem ignorar a morte do último homem, sem
confusão nem descontinuidade, esta Mente nunca ignorou o rei criado por Ele,
para estar ao seu lado, semidivino, no Céu, herdeiro do Pai. Ao entrar adulto
no seu reino, depois de ter vivido na casa da mãe, a terra com a qual foi feito
durante a sua infância de Eterno, na sua jornada sobre a terra, este rei teria
cometido contra si mesmo o delito de matar-se na Graça e o latrocínio de
furtar-se do Céu.
Por que então o criara?
Certamente muitos se perguntem isto. Teríeis preferido não existir? Este dia
não merecia ser vivido; por si mesmo, tão pobre, nu e amargo pela vossa
maldade, mas para conhecer e admirar a Beleza infinita que a mão de Deus semeou
no universo?
Para quem teria feito estes
astros e planetas que deslizam como setas e flechas, riscando o arco do
firmamento? Ou os aparentemente lentos, majestosos na sua corrida como bólidos,
presenteando-vos com luzes e estações como se fossem eternos, imutáveis, ainda
que em continua mudança, oferecendo-vos uma página nova para ser lida sobre o
azul, toda noite, todo mês, todo ano, quase como dizendo-vos: “esquecei-vos do
cárcere, deixai as vossas gravuras repletas de coisas obscuras, podres, sujas,
venenosas, enganosas, blasfemadoras, corruptoras e elevai, ao menos com o olhar
na ilimitada liberdade dos firmamentos. Tende uma alma azul olhando tão grande
serenidade, criai-vos uma reserva de luz, para levar à vossa prisão escura.
Lede a palavra que nós escrevemos cantando o nosso coro sideral mais harmonioso
do que acompanhado por um órgão de catedral. A palavra que nós escrevemos
brilhando, a palavra que nós escrevemos amando, visto que sempre temos presente
Aquele que nos quis dar a alegria de existir, e o amamos por nos ter dado este
ser, este esplendor, este deslizar, este sermos livres e belos em meio ao azul
suave, além do qual cumprimos a segunda parte do preceito de amor amando a vós,
o nosso próximo universal, amando-vos doando guia, luz, calor e beleza. Lede a
palavra que nós dizemos, e é aquela sobre a qual regulamos o nosso canto, o
nosso resplandecer, o nosso riso: Deus”?
Para que teria feito aquele
liquido azul, que é um espelho para o céu, um caminho para a terra, sorriso das
águas, voz das ondas, palavra também essa que como os sussurros de seda
farfalhando, com risadinhas de crianças serenas, com suspiros de velhos que
lembram e choram, com bofetões violentos e com chifradas, mugidos e estrondos,
sempre fala e diz: “Deus”? O mar é para vós, como o céu e os astros. E com o
mar, os lagos, os rios, os pântanos, os riachos e as nascentes puras, que
servem a todos para vos transportar, nutrir, dessedentar e purificar, e que vos
servem, servindo o Criador, sem saírem para fora dos seus limites,
afogando-vos, como mereceis. Para quem teria feito todas as inumeráveis
famílias dos animais, como flores que voam cantando, os servos que correm, que
trabalham, nutrem e são recreação para vós, os reis?
Para quem teria feito todas as
inumeráveis famílias das plantas, e das flores que parecem borboletas, que
parecem joias e passarinhos imóveis, dos frutos que parecem cofres de pedras
preciosas, como tapetes para vossos pés, proteção para as vossas cabeças, recreação
útil, alegria para a vossa mente, membros, vista e olfato?
Para quem teria feito os minerais
nas entranhas da terra, os sais dissolvidos nas fontes de águas geladas ou
ferventes, as fontes sulfurosas, as iodadas, as alcalinas? Não teria sido para
que alguém gozasse de tudo, alguém que não era Deus, mas filho de Deus? O
homem. Para a alegria de Deus, para as necessidades de Deus, nada era preciso.
Deus basta a Si mesmo. Não tem que se contemplar para alegrar-se, nutrir-se,
viver e repousar. Tudo o que foi criado não aumentou um átomo a sua infinita
alegria, sua beleza, seu poder. Mas tudo Ele fez pela sua criatura, que Ele
quis colocar como rei na Sua obra: o homem.
Para ver tão grandes obras de
Deus e por reconhecimento para com o seu poder, vale a pena viver. Como
viventes deveis ser gratos. Deveríeis ter sido gratos, mesmo se não tivésseis
sido redimidos, hoje ou no fim dos séculos, porque não obstante tenhais sido os
Primeiros, singularmente, sois até hoje prevaricadores, soberbos, luxuriosos,
homicidas. Mas Deus ainda vos concede sabor de gozar das belezas do universo e
da bondade do universo, e vos trata como se fosseis bons, filhos bons aos quais
tudo é ensinado e concedido, a fim de tornar-lhes mais doce e sadia a vida.
Quanto sabeis, vós o sabeis pela luz que Deus vos deu. Tudo quanto descobris,
vós o descobris porque Deus vô-lo indica no Bem. Porque os outros conhecimentos
e descobertas, que têm o sinal do mal, vêm do Mal supremo, satanás.
A Mente suprema, que nada ignora,
antes ainda que o homem existisse, sabia que o homem, por si mesmo, teria sido
um ladrão e um homicida. E, já que a Bondade eterna não tem limites, antes que
acontecesse a Culpa, pensou no meio para anulá-la. E o meio seria: Eu. E o
instrumento para fazer do meio um instrumento operante seria: Maria. Assim é
que a virgem foi criada no Pensamento sublime de Deus.
Todas as coisas foram criadas
para mim, Filho dileto do Pai. Eu, como Rei, deveria ter tido sob os meus pés
de Rei Divino tapetes e joias como nenhum palácio real jamais teve. Cantos,
vozes, servos e ministros tão numerosos ao redor de minha pessoa que nenhum
soberano jamais teve. Flores, pedras preciosas, todo o sublime, o grandioso, o
gentil, o minucioso, tudo que é possível buscar no Pensamento de um Deus.
Mas Eu devia ser Carne, além de
ser Espírito. Carne, para salvar a carne. Carne para sublimar a carne,
levando-a para o Céu, muitos séculos antes da hora. Porque a carne, habitada
pelo espírito, é a obra-prima de Deus, e por ela, o Céu fora feito. Para ser
Carne, eu tinha necessidade de uma mãe. Para ser Deus, eu tinha a necessidade
de que meu Pai fosse Deus.
Eis que, então, Deus criou para
Si uma esposa, e lhe disse: “Vem comigo. A meu lado, vê tudo quanto Eu faço
pelo nosso Filho. Olha e jubila-te, virgem eterna, menina eterna, que o teu
riso encha todo este empíreo, e dê aos anjos a nota inicial, e ensina ao
Paraíso uma harmonia celeste. Eu olho para ti. E te vejo como serás, ó mulher
imaculada que, por enquanto, és apenas espírito, o espírito em que me deleito.
Olho para ti, e dou o azul do teu olhar ao mar e ao firmamento, a cor dos teus
cabelos ao trigo, a tua candura ao lírio, o tom róseo à rosa, semelhante à tua
pele de seda. Imito nas pérolas os teus dentes graciosos; olhando a tua boca,
faço os doces morangos, ponho na voz dos rouxinóis às tuas notas, e na das
rolinhas o teu pranto. Ainda lendo os teus futuros pensamentos, ouvindo s
palpitações do teu coração, eu encontrei os modelos de arte para criar. Vem,
minha Alegria! Habita os mundo para divertimento teu, enquanto fores a luz que
se move em meu Pensamento, teus hão de ser os mundos pelo teu sorriso, tuas as
belas formações das estrelas e o colar dos astros todos. Coloca a lua sob os
teus pés gentis, cingi-te com o cinto de estrelas da Via Láctea. As estrelas e os
planetas são para ti. Vem e diverte-te, vendo as flores que serão o
divertimento do teu menino, servindo de almofada para o Filho do teu ventre.
Vem, e vê como se criam as ovelhas e os cordeiros, as águias e as pombas. Fica
perto de mim, enquanto eu faço como uns vasos, os mares e os rios, enquanto
ergo as montanhas e as enfeito com a neve e as florestas, enquanto semeio as
searas, as arvores, as videiras, enquanto faço para ti a oliveira, minha rainha
de paz, para ti a videira, meu sarmento que levará o Cacho eucarístico. Corre,
voa, jubila-te, ó minha beleza, e que o mundo todo, que vai sendo criado de
hora em hora, aprenda contigo a me amar, ó amorosa, e se torne mais bonito com
o teu sorriso, ó mãe do meu Filho, rainha do meu Paraíso, amor do teu Deus”.
Vendo o Erro, e olhando para a Sem Erro diz ainda: “Vem a mim, tu que anulas a
amargura da desobediência, da ingratidão, da fornicação humana com satanás. Eu
terei contigo a desforra sobre satanás”.
Deus, Pai Criador, criara o homem
e a mulher com uma lei de amor tão perfeita, que não podeis, nem ao menos
compreender. E vós vos enganais ao pensar como teria aparecido a raça humana,
se o homem não o tivesse alcançado pelo ensinamento de satanás.
Olhai as plantas que produzem
fruto e semente. Por acaso elas conseguem ter semente e fruto por meio de uma
fornicação ou de uma fecundação em cada cem encontros conjugais? Não. Da flor
masculina sai o pólen, guiado por um complexo de leis meteóricas e magnéticas,
vai ao ovário da flor feminina. Esta se abre, o recebe e produz. Não se suja e
o rejeita depois, como vós fazeis, para poderdes gozar no dia seguinte, da
mesma sensação. Depois de produzir não floresce, até a próxima estação e,
quando floresce, é para reproduzir. Olhai os animais. Todos. Já vistes algum animal,
macho ou fêmea, ir um ao outro para algum abraço estéril, ou só algum encontro
lascivo? Não. De perto ou de longe, voando, rastejando, pulando ou correndo,
eles vão, quando chega a hora, ao rito fecundativo, e não se subtraem a isso
para ficarem só no prazer, mas vão além, vão até as consequências sérias e
santas, que conduzem à geração da prole, o único escopo que, no homem, semideus
pela origem da Graça que Eu restitui inteira, deveria fazê-lo aceitar a
animalidade do ato necessário, uma vez que descestes um grau no nível do
animal.
Vós não fazeis como as plantas e
os animais. Vós tivestes por mestre satanás, pois o escolhestes e o desejais.
As obras que praticais são dignas do mestre que quisestes ter. Mas, se
tivésseis sido fieis a Deus, teríeis sido santamente, sem dor, a alegria de
filhos, sem vos esgotardes em copulas obscenas, indignas, que os próprios
animais não conhecem, os animais que não tem alma racional e espiritual.
Ao homem e à mulher, depravados
por satanás, Deus quis opor o Homem nascido de mulher tão purificada por Deus,
a ponto de poder gerá-Lo sem relação com homem. Flor que gera flor, sem
necessidade de semente, mas apenas com o beijo do Sol sobre o cálice inviolado
do Lírio que é Maria.
A desforra de Deus!
Solta os teus silvos de inveja, ó
satanás, enquanto esta está nascendo. Esta menina te venceu! Antes que fosses o
Rebelde, o Tortuoso, o Corruptor, já estavas vencido, e ela é a tua vencedora.
Mil exércitos alinhados nada podem contra o teu poder, e contra as tuas
couraças caem as armas das mãos dos homens, ó perene, e não há vento que possa
dispersar o mau cheiro do teu hálito. No entanto, estes calcanharzinho de
criança, tão rosado, que parece o interior de uma camélia também rosada, tão
liso e tão macio que a seda é áspera comparado a ele, tão pequenino, que
poderia caber no cálice de uma tulipa e usá-la como sapatinho, eis que ele te
pisa sem medo, e te confina em teu antro. Eis que só o teu vagido já te põe em
fuga, a ti que não tens medo dos exércitos. O hálito dela purifica o mundo do
teu fedor. Estás derrotado. Só o nome dela, só o seu olhar, só a sua pureza já
são uma lança, um fulgor de raio, uma enorme pedra que te transpassam, que te
abatem, que te aprisionam no teu covil do inferno, ó maldito, que tirastes a
Deus a alegria de ser Pai de todos os homens criados.
Foi inútil, pois, teres
corrompido os que haviam sido criados inocentes, levando-os a conhecer
sinuosidades e luxúria privando Deus, de ser o doador dos filhos, em suas
diletas criaturas, dando-lhes regras que, se respeitadas, teriam mantido sobre
a terra um equilíbrio entre os sexos e as raças, capaz de evitar guerras entre
os povos e desventuras entre famílias.
Obedecendo, teriam conhecido o
amor. Só obedecendo, teriam conhecido e conservado o amor. Uma posse plena e
tranquila desta emanação de Deus, que do sobrenatural desde ao inferior, para
que também a carne se alegre santamente, esta que está ligada ao espírito,
criada por Aquele que criou o espírito.
Agora, o vosso amor, ó homens, os
vossos amores o que são? Ou libidinagem vestida de amor, ou medo insanável de
perder o amor do conjugue, seja pela libidinagem própria, ou alheia. Já não
estais mais seguros quanto à posse do coração do esposo ou da esposa, desde
quando a libidinagem entrou neste mundo. Tremeis, chorais e tornai-vos loucos
de ciúmes, até assassinos, às vezes, para vingar alguma traição, desesperados,
ou então abúlicos e até dementes.
Eis o que fizeste, satanás, aos
filhos de Deus. Estes, que corrompeste, teriam conhecido a alegria de ter
filhos sem sentirem dor, alegria de nascer sem medo de morrer. Mas agora estás
vencido em uma mulher e por uma mulher. De agora em diante, quem a amar,
tornará a ser de Deus, superando as tuas tentações, para poder imitar a sua
pureza imaculada. De agora em diante, não mais podendo conceber sem dor, as
mães a terão para o seu conforto. De agora em diante, as esposas a terão por
guia e os moribundos por mãe, sendo doce para eles morrer sobre aquele seio,
que é um escudo contra ti, oh maldito, e proteção, diante do julgamento de
Deus.
Maria, a minha cara
interlocutora, viste o nascimento do Filho da virgem e o nascimento da virgem
no Céu. Viste, pois, que para os sem culpa é desconhecido o castigo de dar a
vida e também o sofrimento de dar-se à morte. Mas, se é inocentíssima mãe de
Deus foi reservada a perfeição dos dons celeste, a todos que tivessem
permanecido inocentes e filhos de Deus, teria sido possível gerar sem dor e
morrer sem afã, por justiça de terem sabido unir-se e conceber sem luxúria.
A sublime desforra de Deus sobre
a vingança de satanás foi a de elevar a perfeição da criatura dileta a uma
super perfeição, capaz de anular, ao menos nela, toda lembrança de humanidade,
que fosse suscetível ao veneno de satanás, e para a qual, não de um casto
abraço de homem, mas de um divino amplexo, que empalidece o espírito num êxtase
de Fogo, lhe teria vindo o Filho. A virgindade da Virgem!
Vem. Medita nesta virgindade
profunda, que produz em quem a contempla vertigens de abismo! O que é a pobre
virgindade forçada da mulher que por nenhum homem foi desposada? É menos do que
nada. O que é a virgindade daquela que quer ser virgem, para ser de Deus, mas
sabe sê-lo só no corpo e não no espírito, no qual deixa entrar muitos
pensamentos estranhos, acaricia e aceita caricias de pensamentos humanos? Isto
já começa a ser uma máscara de virgindade, mas muito pouco ainda. O que é a
virgindade de uma enclausurada, que vive só para Deus? É muito. Mas, mesmo
assim, ainda não é uma virgindade perfeita, se comparada com a virgindade da minha
mãe.
Sempre existiu um enlace, até
mesmo no mais santo. O enlace da origem, entre o espírito e a Culpa. Só o
Batismo o desfaz. Mas, é como uma mulher separada do marido pela morte, não
restitui mais em si a virgindade total, como a virgindade dos nossos Primeiros,
antes do Pecado. Uma cicatriz permanece, e dói ao ser lembrada, e está sempre
pronta para reabrir-se em ferida, como certas doenças que periodicamente voltam
com seus vírus, ainda mais ativos. Na virgem não fica esse sinal de um enlace
dissolvido com a Culpa. Sua alma apresenta-se bonita e intacta, como quando
estava na mente do Pai, e reúne em Si todas as Graças.
É a virgem, a única, a perfeita,
a completa, foi assim pensada, gerada, querida, coroada. É eternamente a
virgem, o abismo da intocabilidade, da pureza, da graça que se perde no Abismo
do qual brotou: em Deus, intangibilidade, pureza e graça perfeitíssima.
Aí está a desforra do Deus Trino
e Uno. Contra suas criaturas profanadas, Ele ergue esta Estrela de perfeição.
Contra a curiosidade doentia, esta se esquiva, recompensada em poder amar
somente a Deus. Contra a ciência do mal, esta sublime ignorante. Nela não
existe somente a ignorância do que é um amor aviltado; não há também somente a
ignorância do amor que Deus havia dado aos esposos. E ainda mais. Nela há a
ignorância das concupiscências, herança do pecado. Nela há somente a sabedoria
gélida, mas incandescente, do Amor divino. Fogo que protege de gelo a carne,
para que se torne espelho transparente no altar onde um Deus desposa uma virgem,
e não se avilta, porque sua Perfeição abraça aquela que, como convém a uma
esposa, só em um ponto é inferior ao esposo, sendo-lhe sujeita por ser mulher,
mas é sem mancha, como Ele”.
Pg. 27 a 40
Sem comentários:
Enviar um comentário